|
Filho de mãe
alérgica e fumadora tem patologia respiratória à nascença
Destaque Nélia
Câmara 14/10/2008 09:10:9 |
|
Diário dos Açores: O
tabaco é considerado uma epidemia, responsável por milhares de mortes.
Como pneumologista, que retrato faz? Dias Pereira – Realmente o tabaco
é uma das principais epidemias a nível mundial que mais preocupa a
Organização Mundial de Saúde (OMS) porque, efectivamente, os números não
param de crescer, de ano para ano, sobretudo por parte das mulheres.
Antes, isso era uma situação que dizia respeito apenas aos homens; desde
há uma vintena/trintena de anos, também as mulheres começaram a fazê-lo. E
se, ao nível das diversas patologias, as curvas de morbilidade e de
mortalidade no homem têm vindo a estabilizar, no caso das mulheres essa
curva não pára de crescer. Pensa-se que, por causa do tabaco, por volta do
ano 2020, no mundo, cerca de 10 milhões de pessoas morrerão. Daí as
medidas que têm sido implementadas e propostas pela OMS a todos os
governos e países, notando-se também por parte de Portugal uma grande
preocupação em combater esta epidemia que só começou a ter alguma eficácia
a partir de Janeiro deste ano com algumas alterações legislativas que têm
tido alguma resposta por parte do fumador, levando a quebras
significativas no consumo de tabaco, conforme dizem as estatísticas. No
entanto, o caminho é longo. Se há coisas que estão inviabilizadas,
nomeadamente as drogas tipo heroína e cocaína, nós, médicos, que lidamos
diariamente com estas patologias - extremamente penalizadoras para o
indivíduo, para a sociedade e para os cofres do Governo -, continuamos sem
perceber como é que não se tomam medidas drásticas, com muito mais
energia, como se faz em alguns países da Europa , embora de forma lenta ,
sobretudo porque os custos relacionados com o tabaco são altíssimos,
através dos impostos que os Governos cobram. Se isso é efectivamente um
"in comming" significativo, depois o que acontece, no nosso caso, é que
aquilo que se tem de pagar no tratamento de doenças associadas ao tabaco é
muito pesado e seguramente superior àquilo que se ganha com o cheque que
as tabaqueiras dão ao Governo no final do ano.
DA - No que diz
respeito à nossa região, as taxas de consumo são preocupantes. Como
estamos em termos de doenças associadas ao tabaco? D.P. - Há bases
nacionais que mostram que as doenças cardio-vasculares – enfarte do
miocárdio, cancro do pulmão e bronquite crónica – são, provavelmente,
digamos assim, as pontas-de-lança desta epidemia. No caso dos Açores,
nestas patologias, temos as taxas mais altas do país. Isso está
relacionado com o tabagismo, cujo consumo na Região, como sabemos, atinge
25% da população. Na Região, aquilo que se tem feito para melhorar esta
epidemia tem tido muito pouca efectivação, uma vez que continuamos a ter
uma taxa tão alta de consumo quando sentimos que no país a taxa ronda os
17-18% e na Europa os 13-14%, ou seja, essa diminuição tem a ver com as
medidas que têm sido tomadas e com a educação das pessoas, o que não está
a acontecer aqui.
DA – Fala-se que os fumadores de hoje são gente
menos esclarecida. Isso não corresponde à verdade? D.P. - Não acredito
minimamente nisso. O que vejo, com muita frequência, é gente com curso
superior e com lugares de direc--ção significativos em empresas da Região
com o cigarro na mão.
DA - Os médicos também… D.P. - É isso que
estou a dizer, os médicos e os quadros superiores das empresas.
DA
– Tem a ideia se hoje ainda se continua a fumar por uma questão de status
social e de afirmação? D.P. - Foi sem dúvida nenhuma uma questão
social, mas foi também uma questão de terapêutica quando Cristóvão Colombo
trouxe o tabaco da América Latina. Era um fármaco com acção terapêutica,
sobretudo para as dores de cabeça e para a ansiedade. Isso vê-se nos
campos de futebol – e é estranho –, pois os treinadores fumam um cigarro a
seguir ao outro. Como a ansiedade está no pico da sua expressão máxima,
eles têm de fumar para acalmar. E essa é a função do tabaco, isto é,
quando consumido em grande quantidade funciona como um calmante. Mas isso
deixou de ser um tratamento, desde que foi apanágio das sociedades ricas.
Hoje em dia, sobretudo desde a grande guerra, foi algo que se generalizou
nas casernas e nos campos de batalha – onde era oferecido aos soldados -,
e depois instalou-se como hábito, excepto as mulheres que começaram mais
tarde e têm vindo, cada vez mais, a utilizar o tabaco.
DA – Há um
estudo inglês que refere que os filhos de pais fumadores têm maior
probabilidade de começar a fumar. Que comentário lhe merece a partir da
realidade que conhece? D.P. – Isso está descrito, conheço o estudo, mas
às vezes é preciso esperar um pouco mais para que haja estudos mais
detalhados. No entanto, sabemos é que os filhos de mães fumadoras têm
hipótese de contrair doenças respiratórias muito mais cedo do que os
outros, nomeadamente os asmáticos. Um filho de mãe alérgica e fumadora,
praticamente à nascença começa a ter a patologia respiratória. Isso é um
dado absolutamente seguro e que não precisa de mais confirmações do que
aquelas que já temos. Não há dúvida de que o tabaco também atinge a vida
uterina.
DA – Mesmo que a mãe não fume durante a gravidez? D.P.
– Sim, logicamente com muito menos intensidade, mas, como se sabe, as
pessoas que fumam também estão mais ligadas a ambientes de fumo. Se a
mulher seguir a prescrição médica de não fumar mas continuar a estar no
mesmo meio, acaba por fumar, indirectamente, e a fazer uma continuação do
que praticava antes da orientação médica.
DA - Os doentes fumadores
têm a noção de que estão a perder ar, a respirar menos, e,
consequentemente, a ter menos qualidade de vida? D.P. – As pessoas têm
a noção disso, mas como é uma dependência, uma doença, não é fácil deixar
de fumar. Durante uns anos andou para aí um cartaz a dizer "Try a no
smoker" [tenta não fumar], quando estava em causa dar um beijo. Isso tem
explicação cientifica. Sabemos que alguns dos constituintes do tabaco se
associam aos eritrócitos, cuja função é levar o oxigénio dos pulmões para
as células onde se dá a combustão produtora de energia para que as células
tenham vida e, digamos, a percentagem que os eritrócitos levam aos pulmões
é muito baixa; em termos de competitividade, os constituintes do tabaco
ocupam mais a superfície do eritrócito do que o próprio oxigénio.
Portanto, quando este eritrócito chega junto de uma célula para lhe dar
oxigénio, não leva o suficiente. É um pouco aquela imagem que temos de
alguém que tenta acender um isqueiro que "petisca mas não faz faísca".
Isso interfere no rendimento. Na sequência do que estou a dizer, também
passamos essa mensagem para os doentes. Por isso é que os atletas de alta
competição são desencorajados de fumar, por sabermos que fumar antes de
uma competição pode dar uma certa euforia, mas não há dúvida de que depois
quebra o rendimento físico. Aos doentes, explicamos sempre os efeitos
imediatos do tabaco, como poder activar a memória, predispor a pessoa em
termos físicos e mentais, mas isso é relativamente ilusório porque sabemos
que depois a factura que vem é mais pesada, porque a pessoa acaba por ter
menos rendimento, menos capacidade de memorização, menos predisposição
física e menos resistência.
DA – Sabemos que para uma pessoa deixar
de fumar tem de ter motivação. Depois, o tratamento é caro e não há
garantias de que deixe de fumar completamente. As estatísticas falam em
15%. Portanto, para além das consequências físicas e psicológicas que o
tabaco traz ao indivíduo, o tratamento sai muito caro ao Estado e não há
garantias de sucesso… D.P. – As estatísticas são capazes de ser um
pouco melhores, mas, mesmo que seja 15%, é muito bom porque nos leva a
pensar que cerca de 80% das pes--soas que tentaram deixar de fumar
chegaram a bom porto.
DA – Mas, por enquanto, é uma doença que não
é curável? D.P. – Até há pouco tempo não tínhamos grandes armas
terapêuticas, mas hoje começam a surgir fármacos que contactam
directamente com a nicotina na sua fixação dos receptores cerebrais e
atacam a predisposição que o tabaco tem de produzir determinados efeitos
na pessoa. Já temos capacidade farmacológica de intervir a este nível, o
que tem melhorado também os níveis de resposta nas consultas por parte dos
doentes. Mas esse é um longo caminho que temos de percorrer e que passará
pela intervenção dos sistemas de saúde, mas, sobretudo, passará por
medidas legislativas e de educação.
D.A. - Medidas mais restritivas
do que deixar de fumar em recintos públicos e fechados? D.P. - Nessas
alturas fala-se de fundamentalismo. Acho que não se deve ser
fundamentalista em nada na vida, embora essas questões tenham de ser muito
bem avaliadas porque a saúde não tem preço, mas tem um custo. Do meu ponto
de vista, a saúde deve ser gratuita, a doença não o deve ser, sobretudo se
eu produzo em mim doenças autoinfligíveis. Há pessoas que não têm culpa
nenhuma de contrair doenças e aí o sistema de saúde tem de continuar a
garantir - e bem - a comparticipação que faz e até melhorá-la -, mas as
doenças autoinfligíveis, desde que haja mecanismos que ajudem a pessoa a
não as ter (uma boa educação, novos sistemas de saúde e mecanismos de
prevenção montados na sociedade), e que esclareçam a ponto de quando um
indivíduo chegar a beber ou a drogar-se ter consciência do que está a
fazer e saber que mais tarde ou mais cedo vai contrair uma doença. Sabendo
isso, deve saber dos custos que isso vai ter no bolo geral que a nação tem
disponível para essas coisas, e deve saber que o Estado só lhe vai dar
metade do dinheiro para se tratar porque a outra metade vai ter de
arranjar. É neste sentido que eu digo que, mais tarde ou mais cedo, é um
caminho que o Estado tem de seguir, embora saiba que até lá temos muito
que evoluir porque não se pode tomar atitudes deste tipo sem se preparar
primeiro a sociedade.
DA- O Estado também foi sempre compactuando
porque não tomou medidas eficazes contra o tabaco, o álcool, ou
outras… D.P. – Claro que sim. Mas não há dúvida de que as pessoas que
estão internadas no hospital com cancros de pulmão, enfartes de miocárdio,
cancros de esófago, cancros de estômago, acidentes vasculares cerebrais -
doenças relacionadas com o tabaco -, se não sabem deviam de saber que, por
terem utilizado durante muitos anos o tabaco, o álcool ou as drogas, é que
acabaram por chegar àquele estado. Portanto, entendo que têm de repartir,
de alguma forma, as responsabilidades com alguém. Continuo a dizer que,
nesta fase da nossa vida em comum, nada como fazer todos os esforços para
impedir que se comece a fumar.
A palavra do
leitor
« voltar atrás
Imprimir noticia Enviar por e-mail
|
|
|